Friday, October 29, 2004

Ilustre amor desconhecido

Sentando-se no chão de um pátio público, solta sua bolsa ao lado esquerdo enquanto se encosta em uma pilastra. Arqueólogo do pensamento e da história humana – ou apenas um curioso – apanha um livro, que abre com prazer. Provavelmente o movimento constante dos pedestres lhe tomará um pouco a atenção, mas ele gosta disso. Penetrando no mundo da leitura, agora totalmente entretido, encontra a satisfação que por tanto buscava. Não posso dizer ao certo o que estava lendo mas, pela expressão em sua face, poderia afirmar que viajara por terras distantes, bem diferentes do lugar onde se dispusera a ler.
Como de costume em todas as suas leituras ao ar livre, por um momento sua atenção se desloca do mundo paralelo (?) contido nas velhas páginas de seu livro e se volta ao movimento das almas passantes. Põe-se, então, a imaginar o que aquelas pessoas estariam pensando. Mas, subitamente, todos aqueles indivíduos perdem a importância – na verdade, não tinham muita importância mesmo – quando surge uma mulher merecedora de seus olhares. Charmosa e elegante, e com um braço envolto em gesso, ela carrega sua bolsa no ombro direito. Agachando-se ao aparar as costas em uma pilastra frente à dele – nosso protagonista – parece brilhar, irradiando sua beleza incomum, enquanto pega dentro de sua bolsa um livro.
Ele agora tenta continuar sua leitura, mas é inútil. Desiste. Neste momento seus pensamentos se voltam todos para aquela figura que não deve ter percebido sua presença. Ele passa a utilizar de seu livro como um escudo, para poder se deleitar admirando cada traço daquela que mais parecia uma fada, tamanha a perfeição do seu mistério.
Ela vira os olhos, fitando-o, e depois redireciona o seu olhar para outro alvo aleatório – parece também gostar do movimento dos estranhos. Teria ela olhado propositadamente? Ou seria apenas por olhar mesmo, assim como ele fazia com todos os outros? Bastante irrequieto e tenso, se sente tomado pelo impulso de lhe dirigir alguma palavra. Talvez perguntar o que estaria lendo ou, mais corajosamente, oferecer-lhe um café. “Afinal, o que estaria lendo essa criatura que surge em meu horizonte e me toma toda a atenção?” – continua a se indagar.
De certo, nunca saberá. Pois quando, após ponderar por longos minutos se deveria ou não lhe falar, aquela misteriosa donzela recebe uma visita, que a pega pela mão e lhe tira de lá.

2 comments:

Jubsky said...

Seu blog está cada dia mais completo! Temos que trocar figurinhas...
Tô escrevendo um texto sobre uma palestra foda que eu assisti, sobre o texto de Merleau Ponty "A dúvida de Sesame". Se eu conseguir passar as idéias da palestra, acho que vc vai gostar do texto.
Devo postar hoje ou amanhã.
Nos falamos
Bj
(Ah, e obrigada por ter recomendado meu blog!)

Mauro said...

Essa cronica me parece ter se passado no pilotis do kennedy.